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Os múltiplos Eus

Updated: Jun 16, 2021

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Vários autores e várias terapias abordam a existência de múltiplos eus, como a manifestação de uma personalidade diversificada que se vai desvendando ao longo dos dias. E mesmo na ignorância destas teorias é comum a autoperceção da existência de várias personalidades. Por exemplo, quando falamos sozinhos, ou connosco próprios, existe o eu que fala e o eu que ouve. Ou quando nos autocriticamos existe o eu que critica e o eu que é criticado. Estes múltiplos eus são diferentes versões ou possibilidades de sermos.


E de onde surgem estes eus? Paul Gilbert é um dos autores que aborda este tema, utilizando uma explicação evolutiva para clarificar a existência dos múltiplos eus. Segundo este autor, os humanos evoluíram, de tal forma, que realizam comportamentos específicos que permitiram, e permitem, a sua adaptação a determinados desafios e contextos sociais (como a vida em grupo, o cuidado dos filhos, etc.). A estes comportamentos específicos associam-se diferentes motivos, emoções e estilos de processamento de informação (i.e., formas de interpretar os estímulos à nossa volta – o que prestamos atenção, o que ignoramos e como damos significado ao que acontece). Ao conjunto destes comportamentos, motivos, emoções e estilos de processamento de informação, o autor chamou de mentalidades sociais.


Assim, as mentalidades sociais são potenciais inatos que permitem a construção de papéis sociais. Gilbert identificou cinco mentalidades sociais:

  1. Formação de alianças – estabelecimento de relações de cooperação, permitindo lidar com os desafios à sobrevivência e com as constantes agressões e conflitos dentro do grupo;

  2. Competição ou ranking social – estabelecimento de relações para a competição por recursos, permitindo a resolução de conflitos/agressões dentro do grupo; envolve, também, a aquisição e manutenção do estatuto social (dominância) e a subordinação perante aqueles que têm um estatuto superior, i.e., que são dominantes;

  3. Prestação de cuidados – estabelecimento de relações, nas quais o sujeito investe tempo e energia, entre outros recursos, aumentando, assim, a probabilidade do outro, a quem se presta cuidado, sobreviver, crescer e reproduzir-se;

  4. Procura de cuidados – estabelecimento de relações com outros para que estes invistam tempo, proteção e outros recursos essenciais à sobrevivência, facilitando, também, a regulação emocional;

  5. Sexual – estabelecimento de relações para a realização de comportamentos sexuais.


Dependendo da mentalidade que está ativa, a pessoa sente diferentes emoções, motivações e intenções, variando, também, a forma como interpreta o mundo à sua volta (ex.: justo/injusto, seguro/perigoso, etc.), a forma como interpreta as pessoas que a rodeiam (ex.: simpática/antipática, cautelosa/insegura) e a forma como se avalia a si mesma (ex.: o eu que é amado, o eu que falha, o eu que vence, o eu que ajuda, etc.).


Deste modo, Gilbert afirma que as avaliações que fazemos em relação a nós mesmos, o nosso autoconceito, é coordenado pela atuação das várias mentalidades sociais, de tal modo que o eu que falha é tão real como o eu que vence, ou o eu que é amado, etc., pois todos representam potenciais eus, que são inatos e partilhados por todos os humanos, fazendo parte da nossa herança evolutiva.


Assim, é como se o eu não fosse apenas uma pessoa, mas sim a integração de cinco (ou quem sabe mais) pessoas, cada uma com emoções, motivações, desejos, necessidades e até autoconceitos (ou autoestimas) diferentes. Como seria de esperar, estes múltiplos eus, que agem e sentem de maneira diferente, por vezes entram em conflito, podendo gerar angústia e frustração. Estes conflitos internos são o resultado da ativação de diferentes mentalidades e, consequentemente, da manifestação de diferentes motivações para desempenhar diferentes papéis, de forma a obter resultados sociais distintos.


Quanto mais a pessoa for capaz de integrar e combinar estes vários eus, sem ignorar ou rejeitar nenhum deles, mais saudável e estável será. O que não significa que devemos realizar os desejos de todos eles (até porque isso, para além de não ser prático, não seria possível, já que existem desejos incompatíveis), mas podemos reconhecer esses desejos, assim como os conflitos que possam surgir, e decidir, na presença dos vários eus, o que fazer.


E perante estes conflitos será que tomamos a decisão certa? Na verdade, tomamos a melhor decisão que conseguimos na fase da vida em que estamos. É através dos conflitos que mudamos e nos transformamos. É através da aceitação e reconhecimento dos nossos potenciais eus que crescemos e amadurecemos.

“A natureza humana é como as teclas de um piano; é difícil tocar uma boa harmonia quando apenas alcançamos um número limitado de teclas.”

(Gilbert, 1989. Human nature and suffering; p. 334)




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